Sem bunho não há esteiras

A Associação Recuperar a Aldeia de Torres (ARAT), continuando o seu desígnio de regressar às origens e reabilitar o património arquitetónico e cultural da aldeia de Torres, partiu em romaria, no último sábado de julho, até aos arrozais e marinhas de Perrães, em busca do tão necessário – e difícil de conseguir – material: o bunho. Alguns sócios da Associação mobilizaram-se alegremente para se encontrarem com o artesão, senhor Paulo Ribeiro, que nos conduziu ao local onde existe esta planta. Quer as senhoras, quer os cavalheiros procuraram vestir-se à moda antiga, com chapéus de palha e munidos com a indispensável foice. O terreno era agreste e o bunho alto, verde e duro de cortar, mas entre cantigas do tempo das nossas avós (fruto de uma recolha realizada pela Associação) lá fomos cortando, fazendo os molhos e atando-os à moda tradicional, para depois serem transportados até à nossa aldeia de Torres.

Corte do bunho, que depois é atado, para se fazerem molhos
Sr. Paulo Ribeiro, artesão de Perrães, colaborador da Associação Recuperar a Aldeia de Torres

Terminada a árdua tarefa, o estrado da camioneta serviu de mesa para aí colocarmos os alimentos que antigamente integravam uma merenda tradicional (ovos cozidos, chouriço, presunto, azeitonas, bacalhau assado, boroa de milho e trigo e melão). Não faltou também o vinho branco e tinto e a boa água de Perrães. Aí, à volta de tão saboroso e reconfortante repasto, conversámos alegremente, recordámos tradições antigas e aprendemos com o senhor Paulo muitos ensinamentos relacionados com o tratamento do bunho até à confeção do produto final – as esteiras.

Com esta manhã de trabalho, foi assim alcançado o principal objetivo da nossa iniciativa: adquirir o material para as nossas artesãs de mais idade, que esperam ansiosamente pelo bunho para assim ocuparem as suas tardes de domingo e longas e solitárias noites de inverno, esquecendo a idade, as dores e recordando as alegrias da sua juventude.

Elementos da Associação Recuperar a Aldeia de Torres, amigos de Torres e o sr. Paulo Ribeiro

Iniciativas como esta enriquecem as nossas gentes do campo, ajudam a revitalizar as aldeias, não deixando esquecer o património pessoal e cultural que está em vias de desaparecer.

Artigo publicado no Jornal da Bairrada, a 13 de agosto de 2020.

Artesãos do bunho e do junco

O trabalho artesanal de criação de qualquer objeto, quer seja de adorno, doméstico ou utilitário, requer muita dedicação, conhecimento adquirido e criatividade, da parte de quem o executa. Foi tudo isto que encontrei nas artesãs da aldeia de Torres, quando, a pretexto de recuperar o trabalho da produção de esteiras a partir da planta do bunho, que sempre existiu na Lagoa de Torres, elas, apesar das suas já longas primaveras, responderam afirmativamente, cheias de entusiasmo. Passo, então, a apresentá-las.

Izaíra Jesus Pereira, a residir na sua aldeia natal, desde pequenita que faz esteiras. Está connosco, na Associação, desde o primeiro momento; já participou em dias abertos, participou na Feira Histórica e Tradicional de Vilarinho do Bairro e já foi convidada, pela Coordenadora de Estabelecimento da Escola EB1,2,3 de Vilarinho do Bairro, Dra. Alexandra Gonçalves, para ir à escola, mais que uma vez, sempre com uma finalidade didática e ocupacional. Dá gosto trabalhar com ela, apesar das suas oitenta e cinco primaveras, pois nunca demonstra cansaço, impaciência ou tristeza. Diz, com muita graça, que este tipo de trabalho lhe faz esquecer as dores e os anos. Muito obrigada, Dona Izaíra, pela sua disponibilidade e partilha! Obrigada por tudo o que nos tem ensinado, sem nada pedir em troca! Que ainda possa viver muitos mais anos com essa jovialidade.

D. Izaíra, na confeção de uma esteira individual em junco

Graciete Pereira, com oitenta e três anos de idade, residente em Torres, trabalhou sempre em casa e no campo. Aderiu desde o primeiro momento a esta causa, trabalhando em casa na produção de esteiras e pequenas esteirinhas (individuais) para usar na mesa como naperon individual. A sua grande preocupação é a falta da matéria-prima, o bunho. Quando isso acontece, pega no seu carrinho elétrico e aí vai ela até à Lagoa apanhar um punhado de bunho. Participou igualmente em todas as atividades que a nossa Associação realizou, bem como aceitou o convite para ir à escola de Vilarinho do Bairro ensinar o seu ofício aos alunos e também aos professores de outros países, que devido ao projeto Erasmus+ estiveram entre nós e muito apreciaram este trabalho ancestral. A Dona Graciete não nos ensina só a trabalhar o bunho, ela fala-nos de histórias de vida ligadas às suas vivências de menina da escola, lembrando jogos tradicionais assim como histórias e canções já muito antigas. Graças à sua boa memória, fizemos recolhas importantes do passado desta singular aldeia. Bem-haja, Dona Graciete, que tenha ainda muitos anos para estar entre nós, podendo transmitir estes ensinamentos e assim evitar o seu desaparecimento.

D. Graciete, com a sua esteira de bunho
D. Graciete e D. Izaíra, dando a conhecer a sua arte na Escola EB1,2,3 de Vilarinho do Bairro

Maria Dolores Moreira, com oitenta e nove risonhas primaveras, é viúva, assim como as artesãs que já referi, mas, mesmo assim, e com todas as maleitas que a afligem, tem sempre um sorriso nos lábios. Logo no primeiro contacto que tivemos, Dona Dolores disse-me que seria bom haver na terra um lugar onde as pessoas mais disponíveis, devido à idade e à sua pouca saúde, pudessem estar, para falar das suas memórias e relembrar tarefas e ocupações da sua juventude, que deveriam ser preservadas e partilhadas. A Dona Dolores, sempre que pode, junta-se a nós, trazendo o seu filho Alcides que nunca se separa dela e demonstra  gostar de estar no nosso grupo; também ela faz as suas esteiras e, quando o bunho lhe falta, é vê-la a caminhar até à Lagoa e, no regresso, já é visível, debaixo do braço, “uma paveia” desta desejada planta. D. Dolores, bem como as anteriores senhoras, fizeram questão de enfeitar as suas portas, na Festa do Bunho e do Junco, nos dias doze e treze de outubro de 2019, com objetos confecionados por elas a partir este material. Que bonito foi vê-las, cheias de mistério, querendo fazer surpresa com as suas criações naquela festa!…Graças à iniciativa destas simpáticas artesãs, elas e um grupo de habitantes de Torres foram convidadas para ir à cidade do Porto participar, com os seus trabalhos, no Festival da Paz que se realizou na Praça da República.

D. Dolores, a iniciar a confeção de uma esteira em bunho

Obrigada a todas vós por aquilo que nos transmitiram na vossa simplicidade; só por isso, valeu a pena querer recuperar esta tradição e mobilizar a população para realizar algo de inédito neste lugar. Se esta pandemia nos deixar a todos ilesos, a Associação, com a colaboração dos torrienses e de outros amigos, dará continuidade à Festa do Bunho e do Junco.

Falta ainda falar no único homem artesão deste grupo. Trata-se do senhor José Lourenço, com oitenta e três anos de idade, natural de Ribeira de Pena, que vive já há anos no Lar do Centro Cultural e Recreativo da Poutena, onde o encontrei por mero acaso, e aí soube dos seus talentos. O senhor José é invisual e com um avançado grau de surdez. Não obstante, é muito independente. Enganam-se se pensarem que ele, por esses motivos, é amargo, revoltado e má companhia; pelo contrário, é uma doçura de pessoa, com um semblante sempre iluminado por um sorriso que parece vir-lhe da alma.  Tem a sua horta, nas traseiras da instituição, e lá faz questão em semear e cuidar de imensas espécies hortícolas com que enriquece a cozinha do Lar. Além disso, das suas mãos habilidosas nascem peças de artesanato que nos surpreendem, usando como matéria-prima o bunho, o junco e o papel de jornal ou de revistas.

Sr. José
Sr. José, a confecionar um cesto com papel de jornal e revista, durante a Festa do Bunho e do Junco 2019

Obrigada, senhor José, por me ter mostrado que é preciso muito pouco para sermos felizes, pois a felicidade não está nos bens materiais que podemos conseguir comprar, mas sim dentro de cada um de nós, se conseguirmos estar bem atentos. Fico encantada quando me aproximo de si e, sem que me veja ou sinta, fico a contemplá-lo a tratar da sua horta, a escutar, no seu rádio de pilhas, o terço da tarde ou a produzir  as suas criações usando o bunho, o junco ou o papel, que aproveita para reciclar dando-lhe um caráter utilitário e original. Que grande lição de moral recebemos de si sem pretender convencer-nos. O senhor é um símbolo  de simplicidade, disponibilidade e auto satisfação, pois parece não depender de nada nem de ninguém para mostrar que é feliz.

Da esquerda para a direita: D. Graciete, Alcides e sua mãe, D. Dolores, D. Izaíra, Sr. José

Estas sábias pessoas são o nosso orgulho, tendo-lhes sido atribuído, em Assembleia Geral da Associação Recuperar a Aldeia de Torres, o estatuto de sócios honorários.

Natália Loureiro