Artesãos do bunho e do junco

O trabalho artesanal de criação de qualquer objeto, quer seja de adorno, doméstico ou utilitário, requer muita dedicação, conhecimento adquirido e criatividade, da parte de quem o executa. Foi tudo isto que encontrei nas artesãs da aldeia de Torres, quando, a pretexto de recuperar o trabalho da produção de esteiras a partir da planta do bunho, que sempre existiu na Lagoa de Torres, elas, apesar das suas já longas primaveras, responderam afirmativamente, cheias de entusiasmo. Passo, então, a apresentá-las.

Izaíra Jesus Pereira, a residir na sua aldeia natal, desde pequenita que faz esteiras. Está connosco, na Associação, desde o primeiro momento; já participou em dias abertos, participou na Feira Histórica e Tradicional de Vilarinho do Bairro e já foi convidada, pela Coordenadora de Estabelecimento da Escola EB1,2,3 de Vilarinho do Bairro, Dra. Alexandra Gonçalves, para ir à escola, mais que uma vez, sempre com uma finalidade didática e ocupacional. Dá gosto trabalhar com ela, apesar das suas oitenta e cinco primaveras, pois nunca demonstra cansaço, impaciência ou tristeza. Diz, com muita graça, que este tipo de trabalho lhe faz esquecer as dores e os anos. Muito obrigada, Dona Izaíra, pela sua disponibilidade e partilha! Obrigada por tudo o que nos tem ensinado, sem nada pedir em troca! Que ainda possa viver muitos mais anos com essa jovialidade.

D. Izaíra, na confeção de uma esteira individual em junco

Graciete Pereira, com oitenta e três anos de idade, residente em Torres, trabalhou sempre em casa e no campo. Aderiu desde o primeiro momento a esta causa, trabalhando em casa na produção de esteiras e pequenas esteirinhas (individuais) para usar na mesa como naperon individual. A sua grande preocupação é a falta da matéria-prima, o bunho. Quando isso acontece, pega no seu carrinho elétrico e aí vai ela até à Lagoa apanhar um punhado de bunho. Participou igualmente em todas as atividades que a nossa Associação realizou, bem como aceitou o convite para ir à escola de Vilarinho do Bairro ensinar o seu ofício aos alunos e também aos professores de outros países, que devido ao projeto Erasmus+ estiveram entre nós e muito apreciaram este trabalho ancestral. A Dona Graciete não nos ensina só a trabalhar o bunho, ela fala-nos de histórias de vida ligadas às suas vivências de menina da escola, lembrando jogos tradicionais assim como histórias e canções já muito antigas. Graças à sua boa memória, fizemos recolhas importantes do passado desta singular aldeia. Bem-haja, Dona Graciete, que tenha ainda muitos anos para estar entre nós, podendo transmitir estes ensinamentos e assim evitar o seu desaparecimento.

D. Graciete, com a sua esteira de bunho
D. Graciete e D. Izaíra, dando a conhecer a sua arte na Escola EB1,2,3 de Vilarinho do Bairro

Maria Dolores Moreira, com oitenta e nove risonhas primaveras, é viúva, assim como as artesãs que já referi, mas, mesmo assim, e com todas as maleitas que a afligem, tem sempre um sorriso nos lábios. Logo no primeiro contacto que tivemos, Dona Dolores disse-me que seria bom haver na terra um lugar onde as pessoas mais disponíveis, devido à idade e à sua pouca saúde, pudessem estar, para falar das suas memórias e relembrar tarefas e ocupações da sua juventude, que deveriam ser preservadas e partilhadas. A Dona Dolores, sempre que pode, junta-se a nós, trazendo o seu filho Alcides que nunca se separa dela e demonstra  gostar de estar no nosso grupo; também ela faz as suas esteiras e, quando o bunho lhe falta, é vê-la a caminhar até à Lagoa e, no regresso, já é visível, debaixo do braço, “uma paveia” desta desejada planta. D. Dolores, bem como as anteriores senhoras, fizeram questão de enfeitar as suas portas, na Festa do Bunho e do Junco, nos dias doze e treze de outubro de 2019, com objetos confecionados por elas a partir este material. Que bonito foi vê-las, cheias de mistério, querendo fazer surpresa com as suas criações naquela festa!…Graças à iniciativa destas simpáticas artesãs, elas e um grupo de habitantes de Torres foram convidadas para ir à cidade do Porto participar, com os seus trabalhos, no Festival da Paz que se realizou na Praça da República.

D. Dolores, a iniciar a confeção de uma esteira em bunho

Obrigada a todas vós por aquilo que nos transmitiram na vossa simplicidade; só por isso, valeu a pena querer recuperar esta tradição e mobilizar a população para realizar algo de inédito neste lugar. Se esta pandemia nos deixar a todos ilesos, a Associação, com a colaboração dos torrienses e de outros amigos, dará continuidade à Festa do Bunho e do Junco.

Falta ainda falar no único homem artesão deste grupo. Trata-se do senhor José Lourenço, com oitenta e três anos de idade, natural de Ribeira de Pena, que vive já há anos no Lar do Centro Cultural e Recreativo da Poutena, onde o encontrei por mero acaso, e aí soube dos seus talentos. O senhor José é invisual e com um avançado grau de surdez. Não obstante, é muito independente. Enganam-se se pensarem que ele, por esses motivos, é amargo, revoltado e má companhia; pelo contrário, é uma doçura de pessoa, com um semblante sempre iluminado por um sorriso que parece vir-lhe da alma.  Tem a sua horta, nas traseiras da instituição, e lá faz questão em semear e cuidar de imensas espécies hortícolas com que enriquece a cozinha do Lar. Além disso, das suas mãos habilidosas nascem peças de artesanato que nos surpreendem, usando como matéria-prima o bunho, o junco e o papel de jornal ou de revistas.

Sr. José
Sr. José, a confecionar um cesto com papel de jornal e revista, durante a Festa do Bunho e do Junco 2019

Obrigada, senhor José, por me ter mostrado que é preciso muito pouco para sermos felizes, pois a felicidade não está nos bens materiais que podemos conseguir comprar, mas sim dentro de cada um de nós, se conseguirmos estar bem atentos. Fico encantada quando me aproximo de si e, sem que me veja ou sinta, fico a contemplá-lo a tratar da sua horta, a escutar, no seu rádio de pilhas, o terço da tarde ou a produzir  as suas criações usando o bunho, o junco ou o papel, que aproveita para reciclar dando-lhe um caráter utilitário e original. Que grande lição de moral recebemos de si sem pretender convencer-nos. O senhor é um símbolo  de simplicidade, disponibilidade e auto satisfação, pois parece não depender de nada nem de ninguém para mostrar que é feliz.

Da esquerda para a direita: D. Graciete, Alcides e sua mãe, D. Dolores, D. Izaíra, Sr. José

Estas sábias pessoas são o nosso orgulho, tendo-lhes sido atribuído, em Assembleia Geral da Associação Recuperar a Aldeia de Torres, o estatuto de sócios honorários.

Natália Loureiro

ALMINHAS DE TORRES

As Alminhas são lugares de culto, representadas em pequenas capelas, oratórios ou nichos. São fruto da religiosidade popular que acredita que as almas dos defuntos – necessitando de estar no Purgatório para se purificarem – só subirão ao céu se os vivos rezarem por elas, se estes derem esmolas e acenderem velas.

Estas são construídas com materiais da região e nelas podem aparecer representadas: almas do Purgatório em agonia, a Virgem, Cristo, Anjos, Santos ou ainda o Arcanjo S. Miguel.

As Alminhas localizam-se ao longo dos caminhos rurais, principalmente nas encruzilhadas. Situavam-se aí pois eram lugares de passagem, principalmente a pé, e assim havia da parte de quem passava um momento de recolhimento para rezar um Pai Nosso ou uma Avé Maria pelas almas do Purgatório; também era costume acender uma velinha, pôr umas flores, deixar uma esmola ou azeite para alimentar uma lamparina que iluminava as noites.

Alminhas do Joaquim Calado, em caminho agrícola (terras do Guerra)

As Alminhas são património dos lugares onde existem, fazem parte da vivência desse povo, da sua cultura, da sua religiosidade; são uma herança do passado e, por isso, devem ser preservadas. Infelizmente, o que nos apercebemos é bem o contrário disso: a maioria foi destruída e as que restam têm sido vandalizadas ou deixadas ao abandono.

Alminhas do Alto do Santo, R. das Areias

Nos séculos XIX e XX, havia imensas Alminhas construídas em Portugal, mas só do rio Mondego para norte. O lugar de Torres não fugia à regra, pois também era rico nestas construções. No dizer de uma habitante da terra, pessoa credível e defensora do património local, terão existido cerca de catorze, mas, infelizmente, na atualidade restam apenas seis e pequenos vestígios de mais algumas. São recordadas, por pessoas da terra, as seguintes: as Alminhas do Santo, as Alminhas do Joaquim Calado, as do Alto do Santo, as da tia Maria Quinteira, as do Santo António, as Alminhas das Loureiras, as Alminhas do Cabeço da Santa, as Alminhas do Carreiro, as Alminhas do Castelão, as Alminhas do Belchior, as do Moita e as do António Moreira.

Alminhas do Belchior, R. Principal

Três das Alminhas atualmente existentes foram recuperadas, nos finais do século XX, pelas juntas de freguesia de Vilarinho do Bairro e de Ourentã, a pedido de uma família de Torres. São elas as do Joaquim Calado, as do Belchior e as do Alto do Santo. Em relação às Alminhas de Santo António, devido à destruição da capelinha e à deslocação da imagem do santo para a capela de Torres, a sua perpetuação foi conseguida graças a uma família que construiu um nicho na parede exterior da sua casa, tendo colocado aí uma imagem de Santo António – honra seja feita a estes torrienses. De igual modo, as Alminhas do António Moreira são lembradas num nicho existente numa casa privada. Finalmente, ainda existem as Alminhas do Carreiro, situadas na Gândara de Alfeiteira.

Nicho que evoca as Alminhas do Santo António

A Associação Recuperar a Aldeia de Torres gostaria de fazer um apelo a todos os amigos da terra e aos seus responsáveis autárquicos para que se envolvessem e empenhassem na preservação e recuperação deste património, que poderia ser mais um ponto de atração para os visitantes e, quem sabe, o elemento fundamental para a criação de um novo percurso pedestre. Acima de tudo, permitiria conservar uma manifestação religiosa e genuína do nosso povo.

A Associação está disponível para colaborar neste trabalho tão peculiar e que faz parte dos objetivos desta jovem coletividade.

Bibliografia

Alminhas: Portugal foi o único país a criar estes monumentos, Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – www.snpcultura.org/vol_alminhas.html

Nicho evocativo das Alminhas do António Moreira, R. de Trás
Alminhas do Carreiro, Gândara de Alfeiteira, na bifurcação de caminhos Vilarinho do Bairro – Banhos