Maria Natália Pereira é uma mulher da nossa aldeia, mulher lutadora e com muito valor. Sempre fez e continua a fazer as lides da casa, a cuidar dos animais domésticos, a fazer qualquer trabalho na agricultura, a cuidar dos netos e da bisneta e, na carpintaria do marido, sempre trabalhou com ele executando qualquer tipo de trabalho – e ainda hoje, após a sua partida, continua a utilizar as máquinas para burilar as tábuas e com elas fazer uma gamela ou um outro qualquer objeto utilitário em madeira.
Para além destas competências, há algo de diferente nesta mulher do povo, que a valoriza e causa a nossa admiração: o seu interesse e gosto pelas tradições locais, pela História da sua terra; o seu empenho em não deixar desaparecer as memórias de tudo o que consideramos ser a alma dum povo, aspetos em relação aos quais nem todas as pessoas são sensíveis.
Graças a ela, a nossa Associação conseguiu localizar muitas das alminhas que existiram em Torres e que hoje já desapareceram, saber ainda histórias, curiosidades e profissões já desaparecidas na aldeia. Foi ainda com a sua ajuda que fizemos um estudo sobre a importância da Nossa Senhora do Desterro e despertamos para a procura da possível existência de uma residência senhorial em Torres e da sua localização.
Natália, obrigada por todos os conhecimentos que nos transmitiste e pelo gosto e entusiasmo com que o fizeste. Graças a ti, muitas memórias serão guardadas e relembradas por muito mais tempo. És um exemplo para a tua família e para os teus netos, que muito têm a aprender contigo.
Não vamos esquecer tudo o que nos confidenciaste e procuraremos, com as tuas informações, continuar a fazer investigações que nos possibilitem dar ao lugar de Torres a importância histórica que teve no passado.
Para ti, o meu obrigada e votos sinceros para que continues com essa memória prodigiosa e esse gosto e amor pela tua terra natal.
A avó Lucinda (de seu nome completo Lucinda de Jesus Pereira) foi sempre uma inspiração e uma referência para a família. Sabemos que ficou sem mãe aos quatro anos e que, como era rapariga, o seu pai não se preocupou em a mandar à escola, pois o cavalo e os demais animais domésticos necessitavam da erva para o seu sustento, e era principalmente ela que providenciava o pasto para a forragem. Pouco mais sabia do que assinar o seu nome e, por isso, depois de ficar viúva, lamentava-se por ter de pedir a alguém que lhe lesse as cartas dos seus três filhos emigrantes. Quando eu lá ficava nas férias, a minha avó aproveitava a ocasião: sentava-se ao meu lado e ditava-me aquilo que lhe ia na alma. Invariavelmente, a carta começava assim: «Querido filho, desejo que te encontres de saúde. Nós ficamos bem, graças a Deus, mas com muitas saudades vossas…» A carta continuava como se ela tivesse o filho presente e assim relatava a simplicidade da sua vida, com tristezas e alegrias, os trabalhos do campo e os seus bons ou maus resultados.
Talvez por sentir essa lacuna – que era não saber ler e escrever -, é que a avó Lucinda tinha uma memória prodigiosa: lembrava-se e cantava-nos de cor as modinhas que ela e as demais moçoilas da sua idade dançavam nos “pavilhões ensaiados”. Felizmente que em 1992, tinha ela já oitenta e oito anos, gravámos uma cassete com essas canções da sua juventude e que hoje guardamos como se de uma relíquia se tratasse.
A avó Lucinda foi sempre muito independente e trabalhadora. Quando ficou viúva, em 1974, fez questão de continuar a viver no seu casarão sozinha e, nas longas noites de inverno, quando não tinha sono, a sua única companhia era o rádio a pilhas onde ouvia, madrugada fora, o programa do Zé Candeias. Viveu sozinha dos setenta aos noventa anos, mas sempre com entusiasmo e genica: criava as suas galinhas, cultivava a sua hortinha e fazia questão de guardar os melhores frutos da época para oferecer aos seus filhos e netos, quando a visitavam.
As melhores memórias que tenho da aldeia de Torres são aquelas que a avó Lucinda me transmitiu e também as das minhas vivências das vindimas, da festa da Senhora do Desterro, da Visita Pascal, dos trabalhos do campo, das desfolhadas, dos bailes, da ida ao rio da Moita lavar os cobertores, as colchas malaguesas e toda a roupa de casa que corava ao sol e que, por isso, trazia às camas um cheirinho silvestre que ainda hoje guardo no meu olfato. Um dia de setembro, manifestei o desejo de ter uma esteira feita com o bunho da Lagoa de Torres; a minha avó fez-me a vontade, mas primeiro tive que ir com ela recolher a matéria-prima à Lagoa, entrando numa zona alagadiça e sentindo as sanguessugas que se agarravam às pernas como se de lapas se tratasse. Não mais vou esquecer este momento, associando-o à dureza do trabalho do campo. Foi tudo isto que me ensinou a avó Lucinda e foram estas recordações que me fizeram trocar a cidade pela aldeia e tentar valorizar a terra onde tanto fui feliz.
Como poderei eu testemunhar e retribuir o amor e carinho que dela recebi? Refletindo um pouco, posso recordá-la sempre com muita estima, falar dela como um exemplo aos meus netos, torná-la presente nas minhas orações e não esquecer tudo de bom que ela me ensinou. Penso fazer ainda mais: divulgar as melodias que tenho dela e dar ao fado Liró – um fado que o seu pai cantava nas festas da aldeia – o destaque que ela pretendia.
A avó Lucinda faleceu em 2001, com a bonita idade de noventa e sete anos. Foi ela que me ensinou a sentir a beleza da aldeia onde viveu, da vida do campo, do sabor dos frutos acabados de colher; não esqueço também o sabor da sua canja de galinha, da sua chanfana e da sua deliciosa aletria por ocasião da festa de Torres (aletria que fazia questão de oferecer ao seu primo Doutor Idálio de Oliveira, quando este vinha, de Lisboa, passar férias à Poutena). Por tudo isto e muito mais, tenho o desejo e o dever de fazer o que estiver ao meu alcance para que as tradições de Torres não se percam no tempo e a sua ruralidade seja apreciada por quantos a visitam.
Gravações realizadas em março de 1992, de algumas das canções da avó Lucinda.