Torres nas quatro estações

III – Outono

Vinhedos na R. das Areias – Torres

Já foram as vindimas, as desfolhadas, já se secou nas eiras o milho, já se apanhou e debulhou o feijão, e as abóboras já foram transportadas das terras para as imediações da casa (para o sustento do gado suíno).

Em meados de outubro, o trabalho começa a abrandar; os dias ficam mais pequenos, roça-se o mato para a cama dos animais, apanham-se as agulhas para acender a lareira e aquecer a casa nas próximas noites de inverno. É ao redor da lareira, tendo por companhia o crepitar da fogueira, que a família se reúne e então reza-se pelas almas dos que já partiram, organiza-se o trabalho para os dias seguintes, fazem-se tiras para fazer as mantas que os aquecem na cama no próximo Inverno, as raparigas fazem renda e bordam para o seu enxoval, fazem-se pipocas e conversa-se sobre a próxima ida ao baile, único divertimento na Bairrada, para a juventude, no tempo dos nossos avós.

Neste mês de outubro, e até aos Santos, as famílias mais abastadas iam para a praia da Costa Nova, Mira ou para a Figueira da Foz; também era o período em que se faziam os casamentos dos filhos – e todos casavam pela Igreja -, visto que nesta altura havia um pouco mais de dinheiro, fruto da venda dos produtos da terra e  menos afazeres na agricultura.

A natureza está diferente e as folhas das árvores tingidas de muitas cores começam a atapetar o chão. Os dias são mais calmos, menos quentes e cheios de magia. A onze de novembro é o S. Martinho e, todo o lavrador que se preze, vai à adega com os amigos e dá a provar o vinho novo, tirado dum grande tonel por um buraquinho pequeno chamado espiche; com um pouco de sorte, até pode haver umas castanhas assadas para empurrar o precioso néctar.

O outono é a estação da nostalgia, do encanto de sentir o barulho das folhas quando as pisamos, de ver o entardecer em que o sol se põe tépido, deixando no céu um rasto encarnado que se desvanece nas nuvens. Viver no campo tem o encanto da tomada de consciência da mudança das estações.

Também por isso, fica este relato das vivências em Torres, há algumas décadas atrás.

AS VINDIMAS EM TORRES

Os cachos estão, finalmente, maduros. Setembro é o mês das vindimas, na Bairrada!

Nos tempos presentes, muitos agricultores deixaram de fabricar o vinho nas suas adegas. Transportam as uvas em tratores para grandes produtores, caves ou cooperativas.

O trabalho tem que ser feito com alguma urgência e, como não há muitos jovens nas aldeias, são os vizinhos, os amigos e alguns assalariados que realizam este trabalho da vindima, em dias de muita azáfama e grande esforço físico.

Na manhã do dia 7 de setembro, munida da minha tesoura, comprada expressamente para este trabalho – que eu já não fazia há muitos anos -, fui ajudar na vindima de um dos nossos associados, residente em Torres. Lá encontrei um grupo de vindimadores que, em conversa animada, cortavam os cachos das cepas com rapidez e desenvoltura, fruto da sua experiência. Os cachos tinham um aspeto maravilhoso, pois o verão foi muito quente e seco e, na encosta do Regueirão, em Torres, os bagos tinham um tom dourado e eram muito saborosos. A temperatura começou a subir a meio da manhã, até atingir os 36 graus. Mesmo assim, ninguém esmoreceu, pois o trabalho tinha que ser feito. Os cachos, depois de cortados e depositados em grandes baldes, foram transportados de trator para uma grande adega de Vilarinho do Bairro.

Claro que o trabalho da vindima já não é como o conheci, quando era menina e moça. Nessa época, todos os filhos da terra, mesmo os que andavam a estudar, ajudavam neste trabalho duro, mas também alegre. Os cachos, depois de cortados, eram despejados em dornas, que eram transportadas, em carros de bois, para as adegas dos lavradores. Aí, eram depositados em grandes balseiros de madeira ou, mais tarde, em lagares feitos em cimento, onde as uvas eram pisadas. Durante alguns dias, e duas vezes por dia, os cachos eram mexidos, pois a fermentação fazia com que as cascas e os engaços subissem à superfície, sendo depois necessário empurrá-los novamente para o interior do líquido, facilitando o processo de fermentação.

Toda a aldeia, durante este período, exalava um cheiro a vinho, fermentação e mosto. Era um odor muito intenso que, apesar de não muito agradável para as nossas narinas, denotava o fim de um ciclo que iria trazer abundância e a possibilidade de concretização de projetos às famílias.

Era também no período das vindimas que os jovens, ao final do dia, se juntavam no alambique do senhor Acácio Trancho, para confraternizarem e fazerem companhia ao “homem da máquina” que, ininterruptamente, colocava o bagaço dentro da caldeira para daí extrair a aguardente. Como a noite era longa, fazíamos ceias com marmelos assados, bacalhau, batatas a murro e, quando havia algum colega estudante na Universidade de Coimbra, com jeito para cantar, éramos presenteados com fados e baladas. Claro que também íamos aos bailaricos a Samel, Poutena e Campanas. Aí, dançávamos ou víamos dançar um tango, uma valsa ou um passo doble. Que felizes éramos todos nós, mesmo sem internet, telemóveis ou facebook!… Ao raiar do dia, os rapazes iam aos campos do milho armar os costelos para apanhar pássaros e as raparigas, sentadas não muito longe, ficavam à espera do nascer do sol.

Hoje, o trabalho das vindimas está mais facilitado, embora haja produtores que continuam a fazer o seu vinho em casa, seguindo todo o processo tradicional.

A vindima continua a exigir uma grande quantidade de mão-de-obra. Os grandes produtores de vinho na Bairrada chegam a ter, por dia, entre 80 a 100 assalariados por altura das vindimas. Devido à falta de mão-de-obra, este ano houve inclusivamente trabalhadores asiáticos, na nossa freguesia, o que deu um colorido diferente e único.

A Bairrada é atualmente reconhecida como uma grande região vinícola, pois temos grandes e conceituados produtores que, introduzindo novas castas, usando castas antigas – como a baga – e aproveitando as técnicas, a criatividade e a sabedoria dos enólogos, conseguem novos paladares que, competindo internacionalmente com vinhos de regiões afamadas, da Europa e do Mundo, têm trazido para a nossa região prémios e distinções que nos dão muito orgulho e alento para continuar a valorizar o trabalho da terra.

Natália Loureiro

Fotografias de Marianne Moerings